Há
casos como este que nos levam a pensar como seria bom termos o poder e
a capacidade de alterar os rumos dos acontecimentos. Como seria bom podermos
inverter tudo isso mas naquele instante de tensão em que um momento toma
proporções enormes e a dimensão do universo é totalmente impossível.
É o
nosso instinto de sobrevivência a pressentir e a antecipar que um milionésimo de
segundo nos separa a vida da morte e acabamos por constactar que, de facto,
quem vence é a besta que em nós existe. Toda a subtileza dum pensamento, toda a
beleza dum poema, apenas o é se o eternizarmos no nosso conhecimento contínuo. Pelo
contrário um momento destes, vivido assim desta forma tão intensa e extrema em
termos emocionais fica, sem qualquer esforço ou intenção, para sempre impresso
na nossa consciência mais profunda, na memória de tudo e de nós mesmos e será
recordado e vivido em todos os instantes do resto da nossa vida; o único conforto
é quando pensamos: sobrevivemos...
De modo que dei
por mim a premir instintivamente o indicador. O estrondo soou e a bala atingindo-o em cheio no peito empurrou-o de encontro à árvore pela qual
escorregou caindo depois para um dos lados. Corri para ele aflito, desorientado
e surpreendido comigo próprio.
Apoiei-lhe
a cabeça contra mim enquanto, sem saber porquê, lhe dei um pouco da água do meu
cantil que apenas molharam os seus lábios grossos e ensanguentados.
Em
combate já tinha abatido inimigos, já tinha visto morrer camaradas mesmo ao meu
lado, eu próprio apresentava umas cicatrizes de estilhaços mal e porcamente
curadas nas trincheiras à base de penicilina, mas nunca tinha passado um
episódio que me tivesse chocado e mexido tanto comigo.
Vi
como ele chorava e chorei também encostando a sua cabeça ao meu peito. Numa voz
quase sussurrada disse-me: - Só não queria ser capturado...
daqui a quinze dias... daqui a quinze dias... vou de licença... Vou ver os meus
pais, os meus avós... a minha namorada...
Falava
lentamente com pausas para tentar respirar, o que fazia com pequenos movimentos
entrecortados em que apenas um dos lados do corpo se movia.
Calou-se.
No seu peito, uma mancha escura e quente alastrava e arrefecia lentamente
empapando-lhe o corpo. Senti como a vida lhe escapava a cada instante.
Olhou
para mim. Os seus olhos escuros não me olhavam com ódio, apenas pareciam
assustados e com pena do que lhe estava a acontecer.
De
repente lembrei-me de Helena, a quem não via há tantos meses... e quase num
murmúrio ele deixou escapar um pedido que apenas entendi pelo gesto de tirar a
custo um envelope de dentro do blusão e que me entregou. Morreu em seguida.
Retirei, com as mãos a tremer e empapadas de sangue, do envelope uma carta dirigida aos pais e à namorada.
(Continua...)
Sem comentários:
Enviar um comentário