Sonhei que estava nu, descalço e num quarto desconhecido. Ao
dar-me conta da minha nudez tive um arrepio que me percorreu de alto a baixo e
por todo o corpo.
Olhei à minha volta à procura da roupa. Estava amontoada
numa cadeira ao fundo da cama. Não me recordava de nada, mas também não perdera
totalmente a lucidez. A roupa assim amarfanhada era mesmo obra minha. A Amélia
diria logo que sim, pois conhecia muito bem o meu modus operandi. A roupa
nesse estado demonstrava que fora mesmo eu despir-me e a “arrumá-la” naquele
quarto. Mas porque razão não me lembrava? Onde estava? Que quarto era aquele?
E, de súbito, fez-se luz. Aproximei-me da roupa e procurei a
carteira. Primeiro num bolso. Depois noutro. Encontrei-a. Abri-a com
voracidade. As notas sorriram para mim. Não tinha sido roubado, menos mal. O famoso árbitro não tinha passado por ali, concluí.
Sentei-me na cama. O quarto rodopiou um pouco. A bebida
ingerida em excesso na noite anterior continuava comigo, não me tinha deixado.
Afinal não sonhei? Estava bêbado? Resolvi esperar sentado na cama daquele
quarto desconhecido. Não sabia o que fazer. E o silêncio "ensurdecedor" daquele lugar! Nem a crepitação normal da mobília já antiga, nem sobrados a ranger, nem passos no andar de cima (mas,
haveria andar de cima?). Só a cama reclamou quando me sentei nela.
Repentinamente, ouço um pingo, límpido, ruidoso, que caiu da torneira para o
fundo do bidé.
Que horas seriam?
Mantive-me sentado na beira cama. Perdi a noção do tempo em
que estive assim, estático, com os olhos fixos ao papel de parede, que era
horrível. Figuras disformes, parecendo diabos a fixarem-me nos olhos com ar
ameaçador. Senti-me no inferno. De repente transformaram-se em anjinhos e
vieram salvar-me levando-me de volta para o paraíso. Olhei para o céu enquanto
pensava, mas… o meu olhar chocou na sujidade húmida do tecto. Na imundície do
tecto conseguia vislumbrar figuras e imagens que me lembravam
aqueles velhinhos que nos jardins atiram milho e pedacinhos de pão aos pombos, que debicavam aos saltinhos mas com olhares desconfiados.
Ao sentir-me um desses velhos
senti uma repugnância enorme. Não por eles, mas pela sua condição. Eu sou (ou
sinto-me) novo demais para ficar ali naquele estado de abandono.
Ali... Mas afinal onde era "ali"? E quem morava,
ou dormia... "ali"?
Levantei-me. À medida que caminhava, sentia as picadas do
lixo da alcafifa na planta dos pés.
Aproximei-me do guarda-fatos e abri-o. O que encontrei era
de uma insignificância que me deixou desolado. Roupas de cama, cobertores,
almofadas e travesseiros. Sem me dar conta, comecei a ordená-los, do maior para
o mais pequeno, por classes. Primeiro as roupas de cama, depois os cobertores
e, por fim, almofadas e travesseiros. No fundo do guarda-fatos encontrei uma
moeda de 200 escudos (com a cara de Garcia de Orta), um lenço de papel
amachucado e uma chiclete de mentol. Comecei a abrir as gavetas da mesinha de
cabeceira. Na do fundo, nada… tudo vazio! Na primeira e mais pequena de
todas finalmente encontrei tudo aquilo que aí teria colocado no dia
anterior: o Jornal “a bola”, uma caixa de chicletes e um bilhete de um
jogo de futebol. Sim, do último Benfica-Porto a que tinha
assistido. Nas costas, e com a minha própria letra podia ler-se um comentário:
"perdemos... hoje não foi possível fazer mais... com Pedro Proença a
validar o golo do Maicon completamente fora de jogo…".
De repente, entra no quarto o árbitro da maldição a gritar: “Rua!
Fora, já! Este quarto é meu! Não admito que me insultes… eu até sou do Benfica,
heterossexual e de esquerda, porra!"
E... acordei!
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