Externato de Santa
Luzia, Vila Flor. Novembro de 1969.
Nesse dia chovia a
cântaros e os alunos da turma A do (antigo) 5º ano viam-na cair, através das enormes
janelas da sala de aulas situada do 2º piso do novo edifício, enquanto ouviam, distraidamente, o professor de Religião e Moral a discorrer sobre Deus.
A páginas tantas ele quis que, todos nós,
reflectíssemos sobre o tema. A mim, pessoalmente, não me apetecia nada falar de
uma entidade tão abstracta. Apetecia-me pensar e discutir sobre coisas mais
concretas como a fome, a guerra colonial ou a injustiça dos homens. Sobre a dor
daqueles que sofrem. Sobre futebol. Sobre as diferenças entre a educação dos
rapazes e das raparigas que nessa época ainda era muito acentuada, etc, etc.
De religião e de
Deus não me apetecia falar. Pronto.
Mas - nem de propósito - o
Professor, parecendo adivinhar os meus pensamentos, resolveu interrompe-los
perguntando-me: - E tu, Bernardino,
acreditas em Deus?
- Eu!? Respondi
atarantado.
- Sim, tu mesmo.
- Para ser sincero
não acredito- respondi agora com toda a convicção.
- Ai não!? Então
como explicas a existência da terra, dos animais, das plantas, do céu e dos
oceanos? Acreditas em quê, afinal?
- Acredito na
natureza e na sua força para criar e transformar tudo isso - respondi
simplesmente.
- Na natureza!? E
quem criou a natureza?
- E quem criou
Deus? – Retorqui já bastante nervoso
-Já que tens
resposta para tudo, diz-me lá qual a cor dos olhos da natureza? - Perguntou-me
o professor agora algo irritado mas com o seu sorriso mais irónico.
- Não sei! Mas
talvez fique a saber quando o Sr. Padre me disser qual a cor dos olhos de Deus
- respondi-lhe de pronto, enquanto ouvia as fortes gargalhadas dos meus colegas de turma.
Já não me recordo
se, dessa vez, o professor me expulsou da sala de aulas. O que sei é que hoje,
passados cerca de 45 anos após esta pequena discussão existencial, não tenho
tantas “certezas” como tinha nessa época.
O que me parece é
que cada um à sua maneira o invoca ou o renega, de acordo com a sua imagem.
Muitas vezes, e
perante determinados acontecimentos trágicos que se passam por perto penso que
se Deus existisse tinha que ser muito grande, mas não do tamanho que os crentes
imaginam que ele seja. Por outro lado, também penso que seria muito estranho
que um ser tão grande, tão omnipresente e omnipotente, enfim, tão supremo, fosse
tão facilmente perceptível por seres tão mesquinhos como os da nossa
espécie. Desde logo por alguns daqueles que representam a própria Igreja.
Muitos falam em
nome de Deus. Uns a favor, outros contra. Mas Deus não é futebol, nem política.
Felizmente, hoje em
dia, somos tão livres que podemos ter opiniões tão discordantes.
Tão "livres" que em alguns países existem fundamentalistas tão
radicais que, em seu nome, matam, destroem e cometem as maiores
atrocidades. Tão livres que muitos de nós vêm na nossa liberdade a prova
da sua inexistência. Tão livres que muitos desejam um Deus que os apoie,
principalmente quando se sentem comovidos por situações que os transcendem.
Outros desejam um Deus que seja mais que um pai.
Para mim se Deus
existisse não teria apenas o papel de perdoar e limpar os disparates e as crueldades
que o Homem faz todos os dias em qualquer canto do globo terrestre.
Com toda a certeza
que ele não daria a importância que qualquer um de nós imagina que ele daria a
um texto como este. Acho que ele não estaria para aturar merdas destas...
Tirando a "ironia" do último parágrafo, ( mas até isso lá fica bem) acredita amigo que gostei muito. E como tu dirias...mas gostei mesmo.
ResponderEliminarParabéns e um abraço.
MAFreire
Isto é apenas mais um fragmento do meu diário de (mau) estudante. Quando este episódio aconteceu eu já era um aluno repetente e era dos tais rapazes que não tinha o (agora) chamado "filtro social". Dizia tudo o que sentia e às vezes era inconveniente. Ao longo da vida fui arranjando alguns desses filtro que, com a minha idade, já perderam qualidade. Estão rotos, ou entupidos, e já digo outra vez aquilo que me apetece... Obrigado e um abraço amigo
EliminarChama-lhe o que quiseres, independentemente do que chamas (mau), comum a maioria dos que, também, tinham o privilégio de "andar no colégio" com filtros daqui, peneiras da panificação dali, etc. etc. tu, foste e ainda bem que continuas, igual a ti próprio. Eras e ÉS TU ao contrário dos que temos agora (com os tais filtros) que são apenas aquilo que os outros querem que sejam.
Eliminar1 grande abraço amigo
MAFreire