Estava a trincar, alternadamente,
uma maçã que segurava na mão esquerda e um pedaço de queijo Camenbert que tinha na
mão direita quando uma carrinha de caixa fechada parou mesmo à sua frente. Saíram de lá um homem de bata branca e uma mulher de avental e lenço também
brancos. Contornaram a carrinha cada um do seu lado, abriram em equipa a porta traseira que abria e fechava em forma de livro e
retiraram do seu interior um cesto de pães enormes com a côdea tostada e estaladiça. Entraram pela porta principal da estação e reapareceram passados alguns
minutos. Ele, calmamente, a sacudir as mãos da farinha. Ela esbaforida e a
berrar pelo facto de mais uma vez ele ter vendido fiado.
Quando
Zeferino lhes pediu boleia o homem, a quem a mulher chamava de
Zequinha, aproveitou o pretexto para acabar com a discussão perguntando-lhe
para onde queria viajar. - Está
bem, levo-te até Moncorvo se não te importares de fazer duas paragens connosco, uma
em Carviçais e outra no Larinho, enquanto vamos distribuir o resto do
pão.
Zeferino acomodou-se
então no único banco disponível do furgão entre sacos vazios, amarrotados e
sujos de farinha. Assim, no seu canto, e à medida que a viagem ia
decorrendo, pensava para si que qualquer semelhança entre aquela estrada
esburacada, sem separadores centrais, que se serpenteava entre sobreiros,
amendoeiras e pinheiros bravos e as modernas estradas de França era uma pura
coincidência. Aqui parecia que não circulavam veículos fabricados neste século.
A maioria eram camiões, carros velhos, “chaços” que se envolviam numa nuvem de
fumo e pó e que produziam um barulho ensurdecedor. O mais curioso é que só
agora no regresso a Portugal é que Zeferino se dava conta destes pormenores e os interiorizava desta maneira.
Também em si próprio
notava que muita coisa havia mudado. De facto, logo que deu os primeiros passos
em Barca d´Alva, sentiu que já não era o mesmo e que tinha regressado mais
adulto, mais inspirado e virado para uma vida mais ampla e global… com uma
visão mais pragmática e realista do mundo e, em consequência, melhor preparado
para ultrapassar esse que seria sem dúvida um dos piores períodos
que teve de percorrer e viver enquanto jovem ainda adolescente e, sobretudo,
enquanto estudante.
Vinha também mais armado sob o ponto de vista psicológico e moral
para superar essa “crise” da adolescência
e alguns dos episódios que viveu nessa época e que sentiu de forma intensa,
quase dramática.
Sentiu
sobretudo que esta também tinha sido uma viagem ao interior de si mesmo e, ao
fazê-la, pode analisar todos os aspectos da sua vida com a mesma visão e viver consigo
próprio com maior honestidade, sem receios, nem medos, nem preconceitos. Esta
viagem ao interior do seu âmago assim dessa forma tão saudável permitiu-lhe
enfim uma melhor aceitação de si mesmo e melhorar o seu auto conceito e auto
estima.
Prometeu a si
próprio que nunca mais iria ter um fracasso nos seus estudos. Iria estudar e
aplicar-se como nunca o tinha feito até aí. Nunca mais iria reprovar em
qualquer exame que tivesse de fazer como, infelizmente, já lhe tinha acontecido
em duas situações anteriores. Assim, com esta auto confiança adquirida nunca
mais iria baixar os braços e não deixaria que as dificuldades dessem cabo
da sua alegria de viver.
Habituar-se-ia a não gastar os seus dias com queixas e
lamentações e (re)aprenderia a viver sem algumas das coisas a que achava que
tinha direito e, entretanto, lhe foram retiradas, ganhando com isso a
possibilidade de desfrutar de outras ainda com mais potencialidades.
Aprenderia ainda a olhar para as pessoas, para os objectos, para
os sítios, para os acontecimentos, com outros olhos, com outro sentido de
descoberta.
Prometeu ainda a
si próprio que, porventura, deste período negro sairia mais forte e com mais
capacidade de conseguir ver o lado positivo da vida mesmo quando tudo parecesse
cinzento e nublado.
Assim imbuído
nestes pensamentos mal se deu conta da viagem e quando deu por si já estava em
Moncorvo.
No centro desta
bela localidade de Trás-os-Montes, mesmo em frente à Câmara Municipal, e com
surpresa, viu um carro aí estacionado que conhecia muito bem, o Nissan 240Z,
novinho em folha, do Dr. Silva, veterinário de Vila Flor e seu professor de
Geografia no Colégio de Santa Luzia. – Viva!
Já está! Já tenho boleia até casa. Agora é só esperar que o Dr. Silva regresse
ao seu carro, pensou com regozijo.
O Dr. Silva chegou,
deu-lhe de imediato boleia mas ralhou-lhe por ter faltado às aulas durante a
primeira semana desse terceiro período. Só ficou mais calmo depois de Zeferino lhe ter contado que durante os primeiros três dias dessa semana tinha estado a cumprir o tal
castigo aplicado pelo Padre Cassiano e - sobretudo - as circunstâncias injustas que o motivaram. Depois de ter perguntado se tinha sido mesmo assim que tudo se tinha passado acreditou e pareceu até ter ficado solidário com Zeferino. Fizeram os vinte e cinco quilómetros que separam Moncorvo de Vila Flor de forma muito agradável, bem dispostos e a rirem-se das
peripécias ocorridas durante a viagem e que Zeferino foi relatando com prazer.
Alguém disse que a
vida é uma viagem a três estações: acção, experiência e recordação.
Zeferino podia afirmar com toda a certeza de que esta tinha sido a viagem da
sua vida em que não faltou nenhuma dessas estações…
FIM
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