O
primeiro ano que trabalhei em Carrazeda de Ansiães (1979/1980) foi para mim um ano de aprendizagem.
Os alunos eram oriundos, em grande
maioria, das classes menos privilegiadas principalmente filhos de
pequenos agricultores e de assalariados rurais. Muitos
deles, quando chegavam à escola logo no início das actividades lectivas, já vinham cansados por terem trabalhado
muito naquele dia nas lides domésticas, nas hortas com os pais ou a levar o gado a pastar. Mas... aprendi muito com eles!
Contava-se
que num dos anos lectivos anteriores tinha trabalhado nessa escola uma jovem
professora de Língua Portuguesa, natural de Lisboa, que implicava
permanentemente com os alunos devido à sua pronúncia carregada e tão característica dessa região. Até que um deles,
mais atrevido, lhe respondeu fazendo-lhe esta pergunta:
-
Está sempre a criticar o modo como eu falo e eu não sei falar de outra
maneira, mas sabe a senhora professora quantas tetas tem uma vaca?
A professora ficou de tal modo embasbacada que, depois de gaguejar uma resposta qualquer, caiu no ridículo perante a turma pois não soube responder correctamente à questão formulada pelo aluno e (ainda pior) não teve a humildade de o reconhecer!...
A professora ficou de tal modo embasbacada que, depois de gaguejar uma resposta qualquer, caiu no ridículo perante a turma pois não soube responder correctamente à questão formulada pelo aluno e (ainda pior) não teve a humildade de o reconhecer!...
Esta história (e outras do género) ensinaram-me que devería, no exercício da minha actividade profissional, ter sempre em consideração (entre outros aspectos) o conhecimento que os alunos trazem de
casa, da vida familiar e do seu trabalho para, depois de devidamente enquadrado no currículo, servir de estimulo
e motivação pela melhoria do autoconceito desses alunos. Aprendi também que a escola deveria preocupar-se sempre com as necessidades formativas dos alunos tendo em conta as suas características individuais, condições familiares e o meio em que vivem. É errado fornecer-lhes apenas o que eles não querem nem precisam para o seu dia-a-dia.
Neste contexto, quero dedicar aos meus ex-alunos de Carrazeda de Ansiães estes versos escritos em 1946, por Alice Gomes. Podiam ter sido escritos hoje que fariam exactamente o mesmo sentido e teriam a mesma pertiência!
Professor, diz-me porquê: Neste contexto, quero dedicar aos meus ex-alunos de Carrazeda de Ansiães estes versos escritos em 1946, por Alice Gomes. Podiam ter sido escritos hoje que fariam exactamente o mesmo sentido e teriam a mesma pertiência!
Por que voa o papagaio
que solto no ar,
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?
Professor, diz-me porquê:
Professor, diz-me porquê:
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
e roda, gira, rodopia
e cai morto no chão
...
Tenho ... anos, professor,
Tenho ... anos, professor,
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê ?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que
não me queres responder!
Tu falas, falas, professor,
Tu falas, falas, professor,
daquilo que
te interessa
e que a mim
não interessa.
Tu obrigas-me
a ouvir
quando eu
quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
fazes-me
decorar.
É a luta professor,
É a luta professor,
a luta em vez
de amor.
Eu sou uma criança.
Eu sou uma criança.
Tu és mais
alto,
mais forte
mais
poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha!Mas...
enquanto
a tua voz zangada ralha
tu sabes, professor,
eu fecho-me
por dentro,
faço uma cara
resignada
e finjo,
finjo que não
penso em nada.
Mas penso,
penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passear!...
E quando tu depois vens definir
E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e proposições ...
quando
me fazes repetir
que
os corações
têm
duas aurículas e dois ventrículos
e tantas,
tantas
mais definições ...
o
meu coração,
o
meu coração que não sei como é feito,
nem
quero saber,
cresce, cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora,
professor,
a ver se tu assim compreenderias
e me farias mais belos os dias.
(Alice Gomes - 1946)
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