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quinta-feira, 19 de julho de 2012

Professor, diz-me porquê

O primeiro ano que trabalhei em Carrazeda de Ansiães (1979/1980) foi para mim um ano de aprendizagem. 
Os alunos eram oriundos, em grande maioria, das classes menos privilegiadas principalmente filhos de pequenos agricultores e de assalariados rurais. Muitos deles, quando chegavam à escola logo no início das actividades lectivas, já vinham cansados por terem trabalhado muito naquele dia nas lides domésticas, nas hortas com os pais ou a levar o gado a pastar. Mas... aprendi muito com eles!
Contava-se que num dos anos lectivos anteriores tinha trabalhado nessa escola uma jovem  professora de Língua Portuguesa, natural de Lisboa, que implicava permanentemente com os alunos devido à sua pronúncia carregada e tão característica dessa região. Até que um deles, mais atrevido, lhe respondeu fazendo-lhe esta pergunta:
- Está sempre a criticar o modo como eu falo e eu não sei falar de outra maneira, mas sabe a senhora professora quantas tetas tem uma vaca?
A professora ficou de tal modo embasbacada que, depois de gaguejar uma resposta qualquer, caiu no ridículo perante a turma pois não soube responder correctamente à questão formulada pelo aluno e (ainda pior) não teve a humildade de o reconhecer!...
Esta história (e outras do género) ensinaram-me que devería, no exercício da minha actividade profissional, ter sempre em consideração (entre outros aspectos) o conhecimento que os alunos trazem de casa, da vida familiar e do seu trabalho para, depois de devidamente enquadrado no currículo, servir de estimulo e motivação pela melhoria do autoconceito desses alunos. Aprendi também que a escola deveria preocupar-se sempre com as necessidades formativas dos alunos tendo em conta as suas características individuais, condições familiares e o meio em que vivem. É errado fornecer-lhes apenas o que eles não querem nem precisam para o seu dia-a-dia.
Neste contexto, quero dedicar aos meus ex-alunos de Carrazeda de Ansiães estes versos escritos em 1946, por Alice Gomes. Podiam ter sido escritos hoje que fariam exactamente o mesmo sentido e teriam a mesma pertiência! 

Professor, diz-me porquê:
Por que voa o papagaio
que solto no ar,
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?

Professor, diz-me porquê:
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
e roda, gira, rodopia
e cai morto no chão ...

Tenho ... anos, professor,
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?  
Por que é que marulha o mar? 
Porquê ?
Tanto porquê que eu queria saber!
 E tu que não me queres responder! 

Tu falas, falas, professor,
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
 Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
 Obrigas-me a dizer
 quando eu quero escutar.
 Se eu vou a descobrir
fazes-me decorar.

É a luta professor,
 a luta em vez de amor. 

Eu sou uma criança.
 Tu és mais alto,
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha!

Mas...
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes, professor,
  eu fecho-me por dentro, 
faço uma cara resignada 
 e finjo,
finjo que não penso em nada.

Mas penso,
penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passear!...

E quando tu depois vens definir 
o que são conjunções 
e proposições ... 
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas, 
tantas mais definições ...
   
o meu coração,  
o meu coração que não sei como é feito, 
nem quero saber,
cresce, cresce dentro do peito  
a querer saltar cá para fora,  
professor, 
a ver se tu assim compreenderias
e me farias mais belos os dias.
(Alice Gomes - 1946)

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