Ana Luísa estava sozinha na Confeitaria Petúlia, na Rua
Júlio Dinis, naquela manhã chuvosa e fria de inverno. Enquanto tomava a sua
meia de leite e comia uma fatia da meia torrada, meditava na forma como
havia decorrido a última consulta com o seu psiquiatra mais para ocupar a mente
sem se preocupar minimamente com os seus problemas. Recordava-se que dessa vez
não tinha chorado enquanto contava as suas preocupações diárias, ponto por
ponto, página por página.
Entretanto reparou nas muitas cadeiras vazias que a
rodeavam e lembrou-se de como cresceu dividindo um quarto com mais uma cama
vazia. A mãe dizia-lhe que era para quando a família aumentasse, o que nunca
veio a acontecer. “Nunca tive ninguém ao meu
lado”, pensou. Aqui, reprimiu um esgar de choro recordando-se que tinha sido por isso mesmo que se foi habituando a
viver sempre em silêncio. Para desviar a atenção
desses pensamentos negativos olhou para o exterior, onde uma chuva miudinha
parecia segredar-lhe qualquer coisa de negativo.
Entretanto levantou-se, pagou a conta e saiu.
O consultório do Dr. Vicente de Mello, psicanalista onde ela
regularmente ia por causa dos problemas que a atormentavam desde a sua
infância, ficava no último andar do edifício do Shopping Center Itália.
Portanto, mesmo em frente à Confeitaria de onde acabara de sair.
Enquanto atravessava o Largo Ferreira Lapa, olhou o relógio
e acelerou o passo. Já estava atrasada uns dez minutos.
No pequeno átrio do prédio, um letreiro cravado na porta
avisava que o elevador estava temporariamente avariado.
Nervosa, abanando a cabeça, não teve outro remédio senão subir
a pé as escadas dos sete andares do edifício.
Em cada degrau, indignada, pronunciava baixinho um palavrão
diferente, à medida que ia subindo. Ficou admirada consigo própria pois comprovou
que seu reportório de “palavrões” era muito mais vasto do que ela julgava.
Carregou finalmente na campainha da porta do consultório,
cumprimentou o Dr. Vicente de Mello, entrou e atirou-se para o divã, ansiosa.
Deitada de costas, durante cinquenta minutos foi falando sem
parar. Contou o sonho que tinha tido na noite de segunda para terça, em que o
seu pai batia violentamente (e mais uma vez) na sua mãe.
Desta vez não conseguiu reter as lágrimas de revolta ao
recordar o sonho, perante o imperturbável silêncio do Dr. Vicente de Mello,
sentado atrás do divã onde ela estava deitada.
Prosseguiu os seus relatos, sem uma única palavra do psicanalista que nada
dizia. Ela apenas lhe ouvia o respirar compassado atrás dela.
Aquele silêncio ajudava-a mais do que mil palavras.
Sentia-se mais descontraída, menos nervosa.
O Dr. Vicente de Mello era na verdade um grande médico.
Fazia-lhe tão bem!
Respirou fundo. Ao fim dos 50 minutos calou-se finalmente, aliviada.
Levantou-se do divã, ajeitou o vestido, levantou-se e olhou-o para lhe
agradecer.
O médico, na penumbra do consultório, sentado na cadeira por trás do divã, de
cabeça pendente e um ténue fio de saliva a escorrer-lhe pela comissura dos
lábios, dormia profundamente...
Ela, furtivamente, saiu do consultório…
Presumo que este relato seja verdadeiro. Pelo menos tem um final elucidativo.
ResponderEliminar:-) Sabes que uma boa mentira só "passa" se tiver algum fundo de verdade...
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