Uns anos mais tarde e depois de ler as obras-primas de
Henry Miller, Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, compreendi finalmente a razão pela qual o Senhor Raul de Sá Correia achou (e bem) que eu, com
aquela idade, ainda não tinha a maturidade intelectual e emocional necessária e,
portanto, ainda não estava à altura de os ler sem que isso me viesse
eventualmente a prejudicar. Nas conversas que fui tendo com ele ao longo desses
anos foi deixando bem claro que, para ele, “a importância do livro não
está no livro em si mesmo, mas sim no grau de preparação mental e
intelectual do leitor”. Onde ele adquiriu essa convicção para mim foi sempre
uma incógnita tendo em conta que ele não tinha preparação científica ao nível
da pedagogia e, muito menos, da psicologia.
O que é verdade é que ele tinha toda a razão e estava certo.
O primeiro desses dois livros foi publicado, em França, em 1934, e foi imediatamente
censurado em vários países, inclusive durante três décadas nos EUA, por ser considerado
imoral e obsceno. Trópico de Capricórnio foi publicado originalmente também em
França, mas em 1939, e foi banido nos EUA até 1961, por ser indecente, indecoroso
e a tender para a luxúria.
Hoje em dia, quer um quer outro, são considerados obras
intemporais da literatura mundial.
Voltando ao Senhor Raul de Sá Correia, quero relevar a
importância que ele teve, com as suas palavras e os seus conselhos, para a
minha formação global enquanto homem e cidadão. Ele sensibilizou-me para a
importância do conhecimento e incentivou o meu gosto pela leitura. Ao longo de
décadas há uma frase dele que me marcou, acompanhou e ainda acompanha: “...um livro não está no livro em si, mas
está em nós…”.
Continuei a ler Henry Miller, lendo quase toda a sua obra. Foi
um escritor com uma mentalidade muito “à
frente” dos políticos da sua época. Para estes falar, ou escrever, sobre
sexo era tabu, um tema intocável. Ele veio desmistificar esse conceito
e conseguiu escrever sobre sexo de forma natural e mesmo divertida, contando anedotas
sobre o tema sem ser pervertido ou obsceno como, injustamente, foi considerado no
seu tempo. O problema não estava nele, e muito menos nos seus livros, estava,
isso sim, nas pessoas que não estavam mental e emocionalmente preparadas para o
ler.
Tudo isto me faz lembrar a anedota velhinha, atribuída (como
tantas outras consideradas brejeiras) a Manuel Maria Barbosa du Bocage, a qual
reza assim: “Bocage foi certa altura
convidado para um jantar em casa de uma família nobre. No final da refeição, a anfitriã,
enaltecendo a arte do poeta, insistiu para que brindasse os convidados com uma
das suas estórias mas, pedia-lhe para que fosse comedido nos termos, dado a
qualidade das pessoas presentes. Bocage fez um longo silêncio e como não encontrasse
no seu reportório anedótico, algo que cumprisse os requisitos da Senhora optou
por endereçar a todos uma simples adivinha. Então, voltando-se para os
convidados, serenamente, perguntou-lhes qual é coisa que tenho neste momento
entre as pernas, e que há bastante tempo me está a causar um certo incómodo
devido à rijeza. As senhoras presentes, imediatamente abriram os leques e
taparam com eles os rostos afogueados e os sorrisos maliciosos. Os cavalheiros
levantaram-se dos assentos e protestaram não ser de bom-tom trazer para o
convívio de pessoas nobres, um convidado de tão baixa educação. Gerou-se na
sala um burburinho tamanho, que fez com que a anfitriã muito ofendida e
envergonhada, pedisse ao Bocage para se retirar. Calmamente, Bocage levantou-se
e antes de abandonar o seu lugar, voltou-se solenemente para todos os
convidados e disse-lhes: minhas senhoras e meus senhores, temo que tenham
retirado conclusões apressadas acerca da resposta à adivinha que lhes coloquei.
Ao contrário do que imaginaram... aquilo que estava no meio das minhas pernas e
me incomodava pela sua rijeza, era a perna da mesa.”
Tal como o livro não está nele próprio mas sim no leitor, também a obscenidade não está nela mas em quem a classifica desse modo.
Tal como o livro não está nele próprio mas sim no leitor, também a obscenidade não está nela mas em quem a classifica desse modo.
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