Zeferino
chegou a Bordéus cansadíssimo. Despediu-se, agradecendo a boleia ao motorista
Ricard e ao pai de Lille e foi caminhando, de mochila às costa, pelo centro da
cidade, até que se sentou num dos bancos do Jardin Botanique, mesmo em frente
da Bibliothèque du Jardin Public e do Muséum d'Histoire Naturelle de Bordeaux e
muito perto do Rio Garonne.
Entretanto,
já deitado ao comprido no banco, uma rapariga veio ao seu encontro e disse-lhe: - Olá, estás à procura de sítio
para ficar? Conheço um sítio muito barato onde poderás descansar muito melhor
do que aqui neste banco.
Apesar
de não ter planeado tal coisa, decidiu aproveitar a ocasião e respondeu: -
Sim, por favor.
Depois
de entrar no pequeno quarto, que não ficava muito longe dali, deitou-se na cama
e adormeceu de imediato.
Acordou
inesperadamente muito antes do que esperara tendo em conta aquilo que o corpo
lhe pedira antes de adormecer profundamente.
Ainda
sentia a cabeça pesada da jornada anterior (mais de 24 horas sem dormir) e
voltou-se demoradamente para o outro lado sentindo o corpo dorido sobre a
lisura dos lençóis. Tornou a fechar os olhos voltando a abri-los
lentamente numa fina faixa, apenas a linha que liga o sono ao despertar, por
onde observava as lâminas de luz que das persianas traziam fatias quase
imperceptíveis do dia para dentro do quarto.
Durante
os minutos soltos da semi-vigilia, apontamentos vagos, meros fragmentos dos
acontecimentos do dia anterior passaram-lhe diante dos olhos.
Rodou
o corpo na cama, olhos novamente fechados, arrastando a lembrança incómoda da
forma como deixou ir Emeralda e o desespero que então lhe havia tomado todo o
ser quando se afastara a fugir e dos dias seguintes em que tudo fizera para dela se
esquecer. Por tudo isso e já cansado, num salto em frente e para
largar a fogueira de mágoas daquela paixão, se deixara ir com Luísa qual fantoche manobrado pelas mãos de Lille.
Levantou-se,
subiu um pouco as persianas afogando em luz o quarto, remetendo os pensamentos
para as fronteiras das memórias distantes … lá longe em Vila Flor. E
pensou… pensou muito!
Pensou
no seu professor de Inglês (que detestava) e que do alto da sua integridade
moral, logo que soube do seu namoro com Lena se transformou em polícia
fazendo-lhe uma perseguição implacável, quer no Colégio, quer fora dele. E que, a certa altura, teve o desplante de ir dizer ao pai dela que essa relação estava a ser muito
prejudicial para ela, que a desconcentrava e que poderia vir a diminuir o
rendimento escolar, que até aí tinha sido exemplar.
Pensou
ainda no pai dela, que era também guarda nacional republicano (GNR), e recordou
o dia em que veio ter com ele no momento em que se encontrava a conversar com
um amigo na Avenida Marechal Gomes da Costa e lhe perguntou, num tom
autoritário e agressivo:
-
Ouve lá, parece que andas a namoriscar com a Lena, é verdade?
Zeferino,
tentando aparentar muita calma respondeu-lhe: - e porque me pergunta a mim?
Não é melhor perguntar-lhe directamente a ela?
-
Olha! Olha-me este! Armado em esperto comigo, é!?
-
Não Sr. Sousa, o que acho é que não devo ser eu a dizer-lhe. Deve conversar com
a sua filha e ela com certeza dir-lhe-á a verdade!
-
Com ela já eu falei! E de que maneira! A ti só quero avisar-te que se
porventura algum dia te encontrar com ela vou correr-te a pontapé! Ouviste?
Perguntou com ar ameaçador enquanto o seu colega de patrulha sorria com ar
cínico e zombeteiro.
-
O senhor está a falar-me como pai dela ou como GNR? Perguntou-lhe Zeferino.
-
Porquê?!
-
Porque se me está a ameaçar como cidadão e pai dela então terei de lhe
responder e agir do mesmo modo; ao agente de autoridade não posso responder,
embora o senhor, enquanto tal, também tenha a obrigação de ser correcto
comigo.
É
bom lembrar que estávamos no tempo da ditadura e num tempo político em que
alguns agentes de autoridade, GNR e PSP, impunham a sua lei à base da força
física, sem assegurar os direitos mínimos dos cidadãos.
Recordou
ainda que depois desta conversa esteve sem ver e falar com a Lena durante uma
semana. O pai dela bateu-lhe tanto e de tal maneira que ela teve que ficar em
casa durante sete dias para recuperar dos hematomas e das dores físicas e
psicológicas infligidas.
A partir dessa altura passaram a comunicar através das mensagens escritas num caderno de capas pretas, que deixavam entregue, em mão, ao Toninho proprietário da Papelaria Académica. O Toninho era cego mas muito amigo, confidente e conselheiro de Zeferino. Foi o único que o apoiou. Foi também o único a ver como esse namoro era puro e genuíno. Ele recebia o caderno de um e só o entregava ao outro, que por sua vez respondia à mensagem e o voltava a deixar.
A partir dessa altura passaram a comunicar através das mensagens escritas num caderno de capas pretas, que deixavam entregue, em mão, ao Toninho proprietário da Papelaria Académica. O Toninho era cego mas muito amigo, confidente e conselheiro de Zeferino. Foi o único que o apoiou. Foi também o único a ver como esse namoro era puro e genuíno. Ele recebia o caderno de um e só o entregava ao outro, que por sua vez respondia à mensagem e o voltava a deixar.
Houve
um período em que também se encontravam à noite, por volta das vinte e uma
horas, quando a Lena vinha à porta de casa receber a Leiteira, que era uma senhora
que andava com um cântaro de latão, de porta em porta, a vender leite de ovelha
ao quartilho. Zeferino ficava escondido até ela medir o leite e depois de se ir
embora lá ia ele namoriscar uns minutos, poucos, mas preciosos.
Numa
dessas noites, já em pleno Inverno, estavam a conversar bem no interior do
jardim da casa dela. No instante em que ela lhe dizia que fugiria com Zeferino
de casa dos pais se ele quisesse e a levasse, o cão dela, o “Rápido”,
começou a mexer muito o rabo e as orelhas, dando sinais claros de que o dono se
aproximava.
-
Foge! É o meu pai que está a chegar! Disse ela muito aflita.
-
Mas para onde? Se fujo para o portão da casa até lá o teu pai pode entrar!
Então,
sem outra alternativa, Zeferino entrou rapidamente para o galinheiro que tinham
construído mesmo debaixo de uma grande cerejeira, enquanto ela se recolhia para
dentro de casa. Escondeu-se num dos cantos mais escuros e fundos do galinheiro,
mas de forma tão desastrada que algumas galinhas se assustaram e começaram a
fazer barulho, batendo com as asas.
Tudo
isto no momento em que o Sr. Sousa entrava pelo portão, se apercebia do barulho
anormal vindo do galinheiro e dele se aproximava perigosamente!
Zeferino
continuava encolhido, sujo, cheio de frio e.. de medo! O “Rápido”, com
saudades do dono, a correr do galinheiro para o portão e do portão para o dono,
distraindo-o mas não o impedindo de continuar o seu caminho até ao galinheiro
para ver o que se passava.
Até
que, talvez por influência da estrela polar, saiu de casa a mãe da Lena e o
salvou da situação perigosa em que Zeferino se encontrava, berrando:
-
Rápido! Que fazes? Pára! Deixa as galinhas em paz!
E, virando-se para o marido exclamou admirada: Tu!? Então já vieste hoje? Pensei
que o teu turno só acabava à meia-noite!
Logo
que entraram para o interior da casa Zeferino saiu do galinheiro muito
lentamente e com todo o cuidado para não assustar de novo as galinhas.
Zeferino
recordou ainda a última noite em que esteve com Lena neste mesmo local. Os
seus beijos sabiam a caldo verde! Mas sabiam tão bem! Enquanto ela lhe
dizia: - Vês aquela estrela? A que brilha mais? Virando-lhe o rosto e o
olhar para a estrela
polar! É com ela que eu falo quando tu não vens ver-me.
De repente Zeferino acordou para a realidade regressando ao presente, tomou um duche rápido e, esfomeado, saiu para a cidade…
De repente Zeferino acordou para a realidade regressando ao presente, tomou um duche rápido e, esfomeado, saiu para a cidade…
(continua...)
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