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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Um livro não está no livro em si, mas está em nós... (II)

Uns anos mais tarde e depois de ler as obras-primas de Henry Miller, Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, compreendi finalmente a razão pela qual o Senhor Raul de Sá Correia achou (e bem) que eu, com aquela idade, ainda não tinha a maturidade intelectual e emocional necessária e, portanto, ainda não estava à altura de os ler sem que isso me viesse eventualmente a prejudicar. Nas conversas que fui tendo com ele ao longo desses anos foi deixando bem claro que, para ele, “a importância do livro não está no livro em si mesmo, mas sim no grau de preparação mental e intelectual do leitor”. Onde ele adquiriu essa convicção para mim foi sempre uma incógnita tendo em conta que ele não tinha preparação científica ao nível da pedagogia e, muito menos, da psicologia.
O que é verdade é que ele tinha toda a razão e estava certo. O primeiro desses dois livros foi publicado, em França, em 1934, e foi imediatamente censurado em vários países, inclusive durante três décadas nos EUA, por ser considerado imoral e obsceno. Trópico de Capricórnio foi publicado originalmente também em França, mas em 1939, e foi banido nos EUA até 1961, por ser indecente, indecoroso e a tender para a luxúria.
Hoje em dia, quer um quer outro, são considerados obras intemporais da literatura mundial.
Voltando ao Senhor Raul de Sá Correia, quero relevar a importância que ele teve, com as suas palavras e os seus conselhos, para a minha formação global enquanto homem e cidadão. Ele sensibilizou-me para a importância do conhecimento e incentivou o meu gosto pela leitura. Ao longo de décadas há uma frase dele que me marcou, acompanhou e ainda acompanha: “...um livro não está no livro em si, mas está em nós…”.
Continuei a ler Henry Miller, lendo quase toda a sua obra. Foi um escritor com uma mentalidade muito “à frente” dos políticos da sua época. Para estes falar, ou escrever, sobre sexo era tabu, um tema intocável. Ele veio desmistificar esse conceito e conseguiu escrever sobre sexo de forma natural e mesmo divertida, contando anedotas sobre o tema sem ser pervertido ou obsceno como, injustamente, foi considerado no seu tempo. O problema não estava nele, e muito menos nos seus livros, estava, isso sim, nas pessoas que não estavam mental e emocionalmente preparadas para o ler.

Tudo isto me faz lembrar a anedota velhinha, atribuída (como tantas outras consideradas brejeiras) a Manuel Maria Barbosa du Bocage, a qual reza assim: “Bocage foi certa altura convidado para um jantar em casa de uma família nobre. No final da refeição, a anfitriã, enaltecendo a arte do poeta, insistiu para que brindasse os convidados com uma das suas estórias mas, pedia-lhe para que fosse comedido nos termos, dado a qualidade das pessoas presentes. Bocage fez um longo silêncio e como não encontrasse no seu reportório anedótico, algo que cumprisse os requisitos da Senhora optou por endereçar a todos uma simples adivinha. Então, voltando-se para os convidados, serenamente, perguntou-lhes qual é coisa que tenho neste momento entre as pernas, e que há bastante tempo me está a causar um certo incómodo devido à rijeza. As senhoras presentes, imediatamente abriram os leques e taparam com eles os rostos afogueados e os sorrisos maliciosos. Os cavalheiros levantaram-se dos assentos e protestaram não ser de bom-tom trazer para o convívio de pessoas nobres, um convidado de tão baixa educação. Gerou-se na sala um burburinho tamanho, que fez com que a anfitriã muito ofendida e envergonhada, pedisse ao Bocage para se retirar. Calmamente, Bocage levantou-se e antes de abandonar o seu lugar, voltou-se solenemente para todos os convidados e disse-lhes: minhas senhoras e meus senhores, temo que tenham retirado conclusões apressadas acerca da resposta à adivinha que lhes coloquei. Ao contrário do que imaginaram... aquilo que estava no meio das minhas pernas e me incomodava pela sua rijeza, era a perna da mesa.”

Tal como o livro não está nele próprio mas sim no leitor, também a obscenidade não está nela mas em quem a classifica desse modo.

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