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sábado, 3 de maio de 2014

A mula Berta...

Era uma mula velha e mansa, com umas enormes pestanas, que o meu avô Alfredo se lembrou de baptizar de “Berta”. Era o resultado de um cruzamento (portanto filha) de um jumento do meu tio/avô Marcelino e da égua do Senhor Simplício.
Desde as minhas primeiras lembranças da minha infância a Berta esteve sempre presente. Recordo os dias em que acompanhava o meu avô que a levava ao lameiro nos “Cerejais” lá longe na aldeia onde nasci, em Pinhal do Douro.
Num belo dia do verão de 1959, ainda não tinha completado seis anos de vida, atrevi-me a ir, sozinho visitar a Berta a esse lameiro. Interrompi a sua refeição, peguei nas rédeas e encostei-a a um muro de pedras soltas mais ou menos da sua altura e, qual cavaleiro experimentado, saltei para o seu dorso de pelo liso, suave e brilhante. Quando bati com os meus pés no sua barriga larga e escorregadia ela acelerou de repente o seu passo de forma tão surpreendente que, quando dei por mim, estava no chão a rebolar na erva macia mas que não impediu que eu me sentisse durante alguns momentos com uma grande falta de ar.
Este episódio aparentemente negativo não impediu novas e excitantes experiências deste género. Pelo contrário, serviu-me de motivação e deu-me um sentido de superação que passou a fazer parte das nossas tardes, talvez durante três semanas, não mais. E quando digo nós, englobo também os meus primos. O Toninho, filho da minha segunda prima Adozinda, que montava o macho da família que levava para um lameiro limítrofe ao nosso lá nos cerejais. E também o meu primo Acácio que levava um cavalo já idoso, mas muito grande e elegante, que era da sua avó.  Mas três semanas, naquela altura, naquela idade, naquele verão, era imenso tempo.
Um dia, no balanço diário que normalmente se fazia ao jantar lá em casa, acabei por referir, embora meio excitado por me atrever a contá-lo, que: “dei uma queda da Berta, nos Cerejais”. Tive receio de que o meu avô me viesse a proibir de voltar a montar a Berta. Mas ele sorriu, achou graça à minha imaginação e coragem e incentivou-me a voltar a fazê-lo com a condição de que até ao fim desse verão seria eu a levar a Berta para o lameiro. 
Tornou-se assim habitual ao jantar toda a família perguntar-me: “e a Berta, hoje que tal se portou?”, e eu lá ia contando os últimos episódios. E depois eles entreolhavam-se, sorrindo. E lá fui desembrulhando a história, todos os dias um pouco. E todos os dias eles ficavam a saber um pouco mais da mula Berta. Sabiam que nas corridas com o macho montado pelo Toninho e com o cavalo montado pelo Acácio, a Berta não gostava nada de perder e para não ficar atrás levava-me a velocidades que me pareciam supersónicas por caminhos de terra batida até à Fonte de Baixo que era por nós considerada a meta final.
Naquele verão, todas as tardes lá íamos buscar a mula Berta, o macho e o cavalo dos meus primos, e com eles passávamos aquelas horas que se estendiam até à hora da ceia. 
A Berta seguia-me, já naturalmente, dando as mesmas voltas, ficando-se quieta e tranquila quando nós nos sentávamos em algum dos muros do caminho, seguindo as nossas brincadeiras com os seus olhos e pestanas enormes, e por ali ficava no ócio connosco, com aquele olhar meigo, tendo-nos como companheiros. 
Depois vinha a noite, e por obrigação lá a ia deixar na loja, já com saudades, inquieto pelo dia seguinte.
Uma noite viram-me tristonho, e já na sobremesa questionaram-me. “Foi a Berta dizia-lhes, já lá não está. Tenho medo que tenha morrido”. E eles entreolharam-se, inquietos e um deles disse-me: “deixa estar, olha porque não passas a brincar com o Farrusco (que era o cão de caça do meu avô) vais ver que é um belo bicho”. Nunca mais voltei a ver a Berta, aquela mula velha e meiga, e as conversas ao serão acabaram por deixar de a trazer e eu de perguntar por ela pois fiquei magoado quando soube que o meu avô a tinha vendido a um cigano que vivia no Vilarinho da Castanheira.

Ainda hoje me lembro dos seus olhos tristonhos, aquelas pestanas enormes, a mansidão com que me matava as horas da tarde. E ouvia os meus pais contarem aos amigos, ou aos meus tios, do entusiasmo com que eu durante dias a fio, trouxe a Berta para as conversas do jantar. 

Nunca os contradisse, nem mesmo em adulto. Afinal, que importância teria?

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